Lacuna Coil

Com o terceiro álbum, Comalies, saindo do forno, Cristina Scabbia fala da ascensão do Lacuna Coil, de rótulos e da presença mais forte das mulheres

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Lacuna Coil

Por Daniel Dutra | Fotos: Zona13/Divulgação

Comalies ainda não havia chegado às lojas quando rolou a oportunidade de entrevistar a vocalista daquela banda italiana que vinha chamando bastante atenção com seu gothic metal. Assim era rotulado o Lacuna Coil, e este foi um dos assuntos da conversa com Cristina Scabbia para promover o terceiro trabalho do então sexteto – Andrea Ferro (vocal), Marco Coti Zelati (baixo), Marco “Maus” Biazzi e Cristiano “Pizza” Migliore (guitarras) e Cristiano “Criz” Mozzati (batreria) completavam a formação à época, sendo que hoje estes três últimos não estão mais no grupo. O papo incluiu temas como a presença cada vez maior das mulheres no cenário heavy metal e as respostas firmes da vocalista – 16 anos depois, pare e pense no que realmente mudou de lá para cá. Curioso? É só conferir a íntegra da conversa, que aqui está disponível em sua versão original. Pela primeira vez.

O Lacuna Coil se destaca pelas melodias instrumentais e, principalmente, vocais, o que compensa em parte a quase ausência de solos de guitarra. É essa a intenção?
Eu apenas posso imaginar o que se passa na cabeça e no coração do Marco ao criar as estruturas básicas de uma canção, e isso inclui as partes de guitarra e bateria, porque ele é o principal responsável por nossa música. Não sou a responsável pelo processo, uma vez que não sou capaz de tocar algum instrumento, mas diria que apenas não aconteceu desta vez, porque tivemos solos em algumas canções no passado. De qualquer maneira, não existe receita para o material que compomos. Em alguns casos, queremos mesmo voltar nossas atenções aos vocais ou a uma melodia guiada pelas duas guitarras, então é realmente por isso que não precisamos sempre colocar solos nas músicas.

Outra coisa interessante é o uso do italiano, como foi feito em Senzafine (N.R.: de Unleashed Memories, de 2001). Obviamente, por uma questão de mercado, o inglês é primordial, mas vocês pensam em explorar mais a língua natal conforme a banda for crescendo?
Incluímos no novo álbum uma música cuja letra é metade em inglês, metade em italiano. Exatamente a faixa-título, Comalies. Optamos por misturar as duas porque o verso era perfeito para ser cantado em italiano, enquanto o refrão era ótimo em inglês. A língua inglesa não é apenas uma questão de mercado, mas também uma maneira mais fácil de dar à canção um bom significado usando palavras simples. Fazer boas letras em italiano requer uma enorme pesquisa, porque as palavras mais musicais têm um significado muito bobo. Gostaríamos até de experimentar outras línguas, como francês e espanhol, mesmo que eu me sinta verdadeiramente confortável cantando em inglês.

O Lacuna Coil é rotulado como gothic metal, e é comum as pessoas associaram a palavra gótico à tristeza. Como a banda nem de longe é para baixo, como você a definiria?
Eu não diria que gótico significa tristeza. Não mesmo. Vejo esse lado gótico como um componente melancólico na própria música, mas não é algo triste. Para mim, o Lacuna Coil é uma mistura de gótico, rock e heavy metal com um toque moderno. O fato é que todos na banda gostam de diferentes estilos, da música clássica ao metal extremo, então colocamos todas as nossas influências nas composições que elaboramos. É por isso que você encontrará rock e metal misturados com arranjos que nada têm a ver com o gótico. Não somos apenas gothic metal, então é muito difícil dar um nome ao estilo do Lacuna Coil. Claro, isso se a pessoa não for ignorante a ponto de nos considerar gothic metal apenas porque há uma mulher cantando ou porque nos vestimos de preto (risos).


Independentemente disso, em pouco tempo o Lacuna Coil virou uma referência no que faz. Grupos como Flowing Tears fazem um som similar e são nitidamente influenciados por vocês. Você se sente confortável nessa posição?
O problema é quando, na maior parte do tempo, é mais fácil nos comparar a bandas com as quais não temos nada em comum. E parece que há muitos grupos novos que vêm sendo associados a nós apenas porque têm uma mulher nos vocais. Isso não faz nenhum sentido, mas, no geral, fico feliz e orgulhosa quando ouço bandas dizerem que são inspiradas por nós. Tenho certeza de que encontrarão em breve um caminho próprio, então desejo a elas tudo de bom.

E quais eram as influências do Lacuna Coil?
Quando começamos, em 1997, fomos provavelmente influenciados pelos álbuns Icon (1993) e Draconian Times (1995), do Paradise Lost, mas ao longo dos anos desenvolvemos nosso próprio estilo. E um estilo bem distante daquelas sonoridades mais cruas, porque as guitarras distorcidas vão de encontro à melodia. Atualmente somos influenciados por nós mesmos, porque são os nossos sentimentos que traduzimos em palavras e música.

Mas que tipo de música e quais bandas você tem escutado atualmente?
Ah, ultimamente tenho escutado Korn, Garbage, Linkin Park, Meshuggah… Sempre tive um largo espectro de gostos musicais, pouco importa o tipo de música que eu mesma faço. Considero-me uma pessoa com a mente bem aberta, amo bandas que vão do clássico ao extremo. Acredito que em qualquer estilo é possível descobrir algo que possa trazer uma nova vibração ao seu próprio trabalho.

O heavy metal não é mais popular como foi na década de 80, mas vem ascendendo novamente com o passar dos últimos anos. Como fã, não apenas como artista, qual a sua perspectiva?
O heavy metal sempre esteve presente, mas as pessoas não percebem porque se trata de um estilo que mudou o próprio rosto milhares de vezes. Hoje em dia, muitas bandas mainstream usam sonoridades do gênero, como guitarras distorcidas e baterias realmente pesadas, enquanto grupos de metal estão absorvendo elementos mais experimentais. Ouça, por exemplo, All the Things She Said, do t.A.T.u, novo nome do pop. A música, com loops de bateria e acordes em tons mais altos, é exatamente o que fizemos em Falling Again, uma canção que compusemos em 1998! (N.R.: e está no disco de estreia, In a Reverie, lançado no ano seguinte) À exceção da linha vocal, é a mesma coisa, só que um pouco mais rápida. Honestamente, gosto dessa mistura de diferentes gêneros musicais, porque estar aberto a novidades é a única maneira para o metal, o rock e o gótico crescerem.

Curiosamente, o t.A.T.u é um duo formado pelas russas Lena Katina e Julia Volkova, e o heavy metal nunca teve tantas artistas mulheres como agora. É uma situação bem diferente da dos anos 80, quando Lita Ford e Doro Pesch eram os principais nomes, porque hoje temos você, Angela Gossow, Liv Kristine, Sharon Den Adel e Tarja Turunen, entre outras, à frente de bandas de estilos diversos. Há uma mudança de mentalidade, não?
Acredito que ainda há muito trabalho a ser feito. Uma mulher sempre vai despertar mais atenção, especialmente num meio predominantemente masculino como o heavy metal, só que o preconceito ainda é forte. Vou lhe dar um exemplo: há situações em que pessoas pensam que uma mulher só está na capa de uma revista porque é bonita, mas essas mesmas pessoas não pensam desse modo estúpido quando é um homem na capa. No passado, as mulheres no metal tinham uma imagem mais agressiva, talvez porque fosse mais complicado fazer parte da cena. Hoje, no entanto, é definitivamente mais fácil fazer parte desse meio, apesar dos casos em que bandas não se preocupam com o talento, afinal, querem uma mulher apenas por causa da imagem. Mas todas as vocalistas que você citou são extremamente talentosas e uma prova definitiva de que existe algo por trás da imagem. Mesmo que algumas pessoas às vezes se esqueçam disso.


E quais são as mulheres que a influenciaram?
Eu realmente gosto da Madonna, só que mais por causa de sua personalidade do que pela voz. Nunca tive uma cantora favorita, mas adoro as vocalistas negras de rhythm and blues e soul, porque muitas vezes elas são capazes de expressar seus sentimentos sem precisar recorrer a uma grande técnica vocal. Prefiro o erro humano à perfeição fria, e é isso que estou tentando fazer no Lacuna Coil.

Depois de tudo o que falamos, podemos dizer que, a despeito de atrair mais atenção do público, ter uma ‘frontwoman’ não é uma apenas uma moda, como alguns críticos vêm alardeando.
Nunca confie nos críticos, mas sim no gosto das pessoas! (risos) Sim, como disse antes, ainda existe muita hipocrisia em relação ao uso da imagem de uma mulher na cena metal. É algo muito infantil, mas acontece porque provavelmente há muita inveja em torno das mulheres que podem facilmente roubar a cena dos homes (risos). Hoje muito mais do que antes. Basicamente, o que eles dizem realmente não importa para mim. Eu já aprendi que quanto mais popular você se torna, mais merda vão falar de você.

Então, vamos falar do contraste entre a sua voz e a de Andrea Ferro, que é mais agressiva. Em Comalies, porém, a sua interpretação às vezes é mais energética do que a apresentada nos álbuns anteriores. Há um maior uso de tons mais baixos. É minha impressão ou foi intencional?
Tentei fazer algo diferente, mas sem um real propósito, porque sempre recebo as melodias vocais depois que as músicas estão prontas. Eu não tenho como planejar nada, realmente, mas amo entrar no clima da canção e expressar aquilo que o meu coração diz para mim. Em uma faixa como Angel’s Punishment foi perfeito cantar com uma voz fria e num registro mais baixo, porque eu queria interpretar um apresentador lendo o noticiário na televisão. Tinha que ser algo bem neutro, então não colocamos nenhum efeito na minha voz. Trata-se de uma música dedicada a todas as vítimas inocentes de qualquer guerra e revoluções, então não fazia sentido cantar de maneira alegre.

Unleashed Memories se tornou um dos meus discos favoritos nos últimos dois anos, mas Comalies causou uma impressão ainda melhor. Músicas como Heaven’s a Lie, Tight Rope e a faixa-título fazem dele o melhor trabalho do Lacuna Coil até então. Isso causa alguma expectativa na banda? Houve alguma pressão depois de o álbum anterior ter sido tão bem falado?
Nunca tivemos nenhuma expectativa especial, apenas nos interessamos em ter a vibração certa para cada música que compomos. Se uma banda se deixa levar por pressões externas, então é porque ela está preocupada com a opinião do resto do mundo. Nós não estamos. Apenas esperamos ter inspiração e, assim que isso acontece, começamos a trabalhar as deias que tivemos. Mas nunca estamos interessados no que as pessoas querem, porque compomos para nós mesmos e simplesmente ficamos felizes compartilham seus sentimentos conosco. Nunca vou virar as costas para os discos anteriores, mas Comalies é elegante, realmente o nosso melhor álbum até agora. É mais maduro e mais pesado, cheio de boas energias e atmosferas. É um trabalho completo, mas nunca planejamos o que vamos fazer no próximo disco, porque existe o risco de perder a espontaneidade, e aí o trabalho pode soar frio e não ser honesto. É exatamente por isso que não sofremos nenhuma pressão exterior, porque somos artisticamente livres para fazer o que quisermos. Posso dizer que não mudamos nosso modo de trabalhar, mas, comparando ao que fizemos no passado, estamos mais concentrados para ir direto ao ponto, evitando coisas desnecessárias que vez ou outra podem parar numa canção apenas para preencher espaço. Algumas vezes menos e mais, e isso não significa menos ideias ou menos paixão na música que fazemos. Significa que aprendemos a ser simples nas composições ao tomar cuidado com detalhes que importam, como a escolha de como cada arranjo vai sair. Por isso, Comalies é verdadeiramente mais pesado do que qualquer coisa que fizemos antes.


Vocês já consideraram lançar um álbum ao vivo depois da turnê?
Não pensamos nisso, honestamente, apesar de eu acreditar que um dia eventualmente iremos fazer. Pessoalmente, para mim é muito melhor ir a um show para assistir à banda diretamente. Não vejo uma real necessidade de lançar discos ao vivo, para qualquer grupo. Para nós, é mais interessante escrever material novo a partir do momento em que temos várias ideias frescas.

E a banda vem crescendo bastante. Você e o Marco têm um relacionamento, mas é algo que não transparece nos palcos, no estúdio, nos discos… Há todo um respeito e uma aura profissional na imagem do Lacuna Coil, o que deveria ser via de regra para todas as bandas.
Eu e Marco ainda não somos casados, apenas noivos, mas aprendemos a separar o lado profissional da vida particular. E há muito respeito entre os integrantes do Lacuna Coil, mesmo. A formação está estável desde 1998, e nos conhecemos muito bem. Sabemos pontos bons e ruins uns dos outros e estamos trabalhando em busca do mesmo objetivo. Sentimo-nos como se fôssemos uma família em que todos têm os mesmos direitos, mas, ao mesmo tempo, todos têm de trabalhar duro para que essa família siga em frente da melhor forma possível.

A primeira versão desta entrevista, editada e adaptada, foi publicada na edição 89 do International Magazine, em novembro de 2002.