Pain of Salvation

Novo reinado no metal progressivo: Daniel Gildenlöw passa Be a limpo e fala da amizade com Mike Portnoy e da decepção com Jim Matheos

Foto: Divulgação

Pain of Salvation

Por Daniel Dutra e Thiago Sarkis | Fotos: Divulgação

O metal progressivo está de cara nova. Depois de liderarem e influenciarem uma geração por mais de uma década, os antigos representantes do estilo agora acompanham o nascimento de um segundo reinado. Liderado por Daniel Gildenlöw, o Pain of Salvation domina a cena ousando, desafiando e se acertando a cada álbum. O conjunto sueco iniciou sua carreira com a fita K7 Hereafter (1996), que conquistou imediatamente europeus e japoneses. O álbum de estreia, Entropia (1997), causou ainda mais alvoroço – inclusive no Brasil, onde foi lançado pela Hellion Records –, e a partir de então o grupo largou o posto de promessa distante e surgiu como uma realidade a ser seguida passo a passo pelos brasileiros. Com uma qualidade assustadora, além de alto poder de renovação, trazendo inovações a todo o prog metal, a banda ganhou espaço e teve todos os seus discos lançados em território tupiniquim. Aproveitamos o bom momento para conversar com Gildenlöw sobre a carreira do Pain of Salvation, os projetos ao lado do baterista Mike Portnoy (Dream Theater), a entrada como membro efetivo no The Flower Kings, a desavença com o guitarrista Jim Matheos (Fates Warning) e, obviamente, o DVD ao vivo BE (Original Stage Production) (2005), que complementa o álbum homônimo, lançado um ano antes.

Lançar um CD e logo após um DVD com todo o material do disco, e apenas ele, ao vivo não é muito usual. Como foi o processo para essa criação gigantesca, quase megalômana?
(rindo) Não foi fácil. Tivemos que trabalhar muito e por extensos períodos, atravessando uma longa estrada. Porém, valeu a pena por ser o nosso desejo desde o início. Na verdade, toda a produção envolvida em Be teve esse aspecto abrangente, espetaculoso. Gravamos o disco em estúdio, mixamos e imediatamente passamos a trabalhar no ao vivo. Lidávamos com as duas coisas ao mesmo tempo. Definitivamente, o DVD é um trabalho distinto do CD. O conceito cresce muito, ganha outras nuances com o que preparamos visualmente e alcança diversos pontos que não poderiam se limitar a um trabalho de estúdio. Desde o princípio tínhamos a ideia de que Be teria que ser algo além de um simples CD. Era preciso mais, e finalizamos tudo apenas na última semana de fevereiro.

O que você pode dizer sobre este conceito? E o que o DVD traz que pode colaborar na compreensão do mesmo?
Acho que o DVD vai trazer é mais confusão (risos). Estou brincando. Be é um trabalho muito abrangente, musical e conceitualmente. O DVD traz o aspecto visual, que é realmente importante neste caso, e sempre pensamos em desenvolver esse conceito tratando tanto da parte sonora quanto visual. Elas se completam, mesmo cada uma tendo suas peculiaridades e funções. É uma relação de interdependência. Por isso o DVD é parte essencial para a história de Be, assim como o álbum. O Pain of Salvation se caracterizou pelo desenvolvimento de conceitos durante todos os álbuns, e de alguma forma os fãs vêm sempre nos acompanhando, seguindo nosso raciocínio, compreendendo e até indo além do que originalmente planejávamos para as histórias. Parece que há um envolvimento forte conosco, e é ótimo ver isso. Deixa-nos muito felizes.

É também uma questão constitutiva da banda, não? Talvez haja uma identificação do público com a enorme expressão de sentimentos profundos que acompanhamos nos álbuns.
Acho que sim. Exploramos diversos aspectos musicais, realmente os mais variados, e somos livres para tocar determinado estilo ou não, dependendo do que a música pede e nossos corações mandam. Porém, principalmente, como você disse, há muitas estruturas emocionais no Pain of Salvation. Elas perpassam os discos, sempre. Nas bandas atuais estamos acostumados a ouvir coisas mais estéreis, que funcionam apenas numa via de linguagem. Nosso objetivo é abrir um campo maior de comunicação, e creio que conseguimos ser mais ativos e intensos nesse sentido. Vamos de colorações pesadas, muitas vezes carregadas, até um gracioso sangue num piscar de olhos. Às vezes as pessoas têm dificuldade de compreender isso. Quando você ouve um álbum pode ter todas as sensações possíveis, mas não é o mesmo que ficar à frente daquelas pessoas que compuseram o disco e estão logo ali no palco, dividindo todas aquelas emoções tão vividamente com você. Tudo se torna mais claro e real. Por isso, para Be quisemos trazer algo que nos aproximasse mais dos fãs, principalmente daqueles para os quais ainda não tocamos ao vivo. Temos a intenção de que esses sentimentos e sensações sejam vivenciados por completo, e o DVD ajuda muito também nesse sentido.

Pain of SalvationPain of SalvationPain of SalvationPain of SalvationPain of Salvation
Daniel Gildenlöw
Johan Hallgren
Kristoffer Gildenlöw
Fredrik Hermansson
Johan Langell

O DVD tem material extra? Há alguma coisa dos outros álbuns nele?
Há bastante bônus no DVD, material bem especial para nós e certamente para os nossos fãs. Sobre músicas de outros álbuns, depois de muita conversa chegamos a um consenso de que não seria correto incluir qualquer coisa que não fosse estritamente do Be. Sei que é algo um pouco diferente daquilo que usualmente temos, principalmente no meio do metal progressivo. Geralmente lançamentos assim cobrem quase toda a carreira de uma banda, e no nosso caso está sendo retratado um momento bem específico. Porém, a complexidade de Be pede algo assim, particular, totalmente dedicado a ele. Tanto é que o DVD tem, de fato, uma longa duração e muitos detalhes. A quantidade e a qualidade do material são as mesmas caso resolvêssemos abordar todo o restante da nossa carreira.

Bem, mas os fãs vêm esperando por um registro ao vivo do Pain of Salvation e extras de todos os outros álbuns da banda. Vocês têm planos em relação a isso?
Sim, sabemos que há essa demanda e também queremos que os fãs tenham acesso a todo esse material. Vimos discutindo isso já há algum tempo, então estamos buscando a melhor maneira de juntar o que temos para fazer um produto de excelente nível, não apenas com registros ao vivo e um set list completo, mas também com os videoclipes, faixas bônus que lançamos no Japão e coisas raras do Pain of Salvation. Espero que consigamos achar uma boa fórmula de adir tudo isso, mas tenha certeza de que quando o fizermos será o melhor possível, com gravações acuradas e alta qualidade. Não queremos lançar qualquer coisa que esteja abaixo daquilo que os fãs merecem.

Voltando a Be, muitas pessoas encontraram dificuldades para entender todo o conceito. Como foi o desenvolvimento da tese que você defende durante o disco? Você mudaria alguma coisa depois de ver essas dificuldades de compreensão da mensagem que queria passar?
O problema do conceito é que só consegui fazê-lo aumentar (risos), pois trata basicamente de tudo, falando do ser. Não há realmente limites para o desenvolvimento de ideias. É um tratado complexo sobre nós mesmos e traz minhas concepções, reflexões e pensamentos desde muito novo, embasadas em leituras diversas e tantas outras referências, é claro. É difícil digerir Be nas primeiras audições, mas acho que com o tempo tudo fica mais claro e compreensível. Haveria mais detalhes a serem adicionados no disco, mas nem todos os esforços do mundo seriam capazes de torná-lo mais acessível. Às vezes ele se assemelha ao trailer de um filme nunca feito. É um tema complicado, e gerar dúvidas e fazer com que as pessoas indaguem são alguns dos objetivos, mesmo.

A ideia de desenvolver um conceito tão filosófico e colocá-lo no meio musical é extremamente interessante, e considero Be muito bem-sucedido por isso. No entanto, há um risco em envolver filosofia e música. Você tinha consciência disso e do desafio ao qual estava se propondo ao começar a trilhar esse caminho?
Certamente eu sabia que era um desafio muito grande, difícil de encarar. Porém, preferi evitar pensar dessa forma, pois não conseguiria desenvolver nada, ficaria completamente travado. Venho construindo o conceito do álbum desde os meus quinze ou dezesseis anos e, agora mais maduro, precisava desenvolvê-lo completamente e lançá-lo. É a maneira como trabalho. Se eu parasse para pensar no tamanho do desafio, em todas as dificuldades que teria pela frente ou no quão grande o conceito se tornaria, não conseguiria muita coisa. Uma vez envolvido na história, não tinha mais como sair, e achei ótimo quando isso aconteceu em Be. Seria ridículo se eu escolhesse um tema qualquer, que simplesmente não me motiva, e gravasse algumas músicas. Definitivamente esta não é a via, e o resultado seria péssimo. Preciso sempre trabalhar tópicos que mexem comigo, e para fazer isso é necessário determinação, é necessário partir de um pequeno ponto para chegar a algo maior. Além disso, dentro dos grandes temas que pensamos desde o nosso primeiro álbum, conseguimos encontrar espaço também para tratar e refletir sobre vários outros assuntos menores. É possível desenvolver dois conceitos lado a lado. Pode-se perceber isso acompanhando nossa trajetória.

Pensando nessa trajetória do Pain of Salvation e nas conversas que tivemos, lembro de você comentar uma vez que quando compôs Ashes achou que aquilo seria um suicídio para a banda dentro da cena progressiva, pela simplicidade da música, o uso de três acordes et cetera. Porém, no fim das contas, exatamente aquela música e The Perfect Element Part I (2000) foram os pontos de partida para um sucesso maior, porque trouxeram muitos fãs para o grupo. Agora que você realmente investiu em algo complexo, tem recebido talvez as mais duras críticas da história do Pain of Salvation. É bastante contraditório por parte da imprensa e do meio progressivo, não?
A imprensa é muitas vezes previsível demais, o que é bastante triste. Pessoalmente, gosto muito de novidades, de encarar algo novo. Porém, normalmente não é isso que acontece no meio progressivo. Há um discurso discutível de se querer uma música complexa, bem feita e inovadora, mas se você mostra algo que não seja familiar, pronto, já tem um problema. Manter a rotina é o que as pessoas parecem de fato querer, e às vezes a complexidade assusta e faz com que elas o chamem de pretensioso e coisas assim. Ashes tinha realmente um lado ousado, mas é uma música simples, fácil para os ouvidos de quem diz querer complexidade. De qualquer maneira, posso dizer que estou bastante feliz com a resposta dos fãs a Be, e também com a resposta de muitos jornalistas. É interessante quando você nota que a pessoa se engaja em entender o que foi feito pelo grupo. Não gosto muito dessa expressão, mas me parece que Be é daqueles álbuns que as pessoas amam ou odeiam. Foi o nosso disco mais vezes eleito como álbum do mês e do ano em revistas especializadas, mas, ao mesmo tempo, aquele que recebeu as mais duras críticas. Posso dizer que estas últimas vieram especialmente da mente pequena de algumas pessoas do progressivo. A única coisa que posso dizer é que, musicalmente, é o melhor álbum que já fizemos. Definitivamente.


Durante o processo de composição, você pensava em como as pessoas receberiam a mensagem do disco? Quais são seus principais objetivos no que se refere a atingir o público?
Os objetivos são aqueles que geralmente o nosso próprio público já faz: refletir, pensar sobre suas próprias vidas e existências. Quanto à mensagem, é complicado pensar em como as pessoas vão receber o que tentamos passar. Às vezes, as reações quanto a ser um bom disco ou não são mais previsíveis, mas em termos da mensagem é uma missão quase impossível. Especialmente em Be, o conceito mais trabalhado que tivemos até hoje, não é possível tirar uma única mensagem, por mais que algo se destaque. Há muitas ideias e perspectivas desenvolvidas, e cada um as recebe à sua maneira, a partir de suas próprias experiências de vida. As conclusões têm de ser pessoais, assim como os significados dados ao álbum. Mas se você me perguntar em qual ponto quero chegar com tantas indagações, direi simplesmente que no disco tento colocar que todos nós estamos errados (risos). Isso não é novidade, nenhuma grande revelação, mas tento expressar isso claramente, provando o que defendo ao questionar a nossa visão da realidade. Há sempre algo que não conseguimos alcançar, independentemente de avanços científicos ou de pensamentos bem estruturados. Irrito-me especialmente com o dualismo do bem e do mal. Isso nos traz sérias consequências. Você pode ver um objeto em forma circular, mas dependendo do ângulo outra pessoa o verá como um retângulo. Ambas as visões são corretas, mas vivemos na necessidade de atestar que aquilo é um círculo ou então um quadrado, quando na verdade pode ser os dois ao mesmo tempo.

Isso vem muito das religiões existentes e até mesmo da ciência.
Sim, e nenhuma delas conseguirá em momento algum definir e comunicar a verdade completa. Deveríamos ser mais cuidadosos ao chegar para outra pessoa e dizer que ela está errada, e é isso que tento trazer com Be. Uma maneira mais suave de dizer que todos estamos errados, que não conseguimos alcançar o todo, por mais que lutemos. Se é que há uma verdade, estamos muito distantes dela para segregar comportamentos ou falar o que uma pessoa deve fazer ou no que está errando. Há limites em nossa percepção como humanos. Como tempo nos acostumamos a jogar pedras em todas as religiões, mas, com a chamada evolução, a grande religião de nosso tempo ganhou outro nome. Hoje clamamos por ela como a qualquer outro Deus, mas não a chamamos de religião. A ciência, pura e simples, apareceu nesse lugar.

E como você observa essa tomada de lugar da ciência sobre as religiões?
A ciência traz algo positivo para nós, pois nos faz indagar, checar, investigar mais detalhadamente. Ela tenta clarear e embasar os estudos, mas é exatamente este o ponto negativo. Levantamos uma série de questões sobre isso, principalmente como indivíduos. Para cada coisa que achamos, a ciência surge para provar que estamos errados. É uma verdadeira invasão de privacidade, e isso pode causar muitos danos. Inclusive, um deles é a ciência e a tecnologia tomarem o lugar da religião como uma verdade que não pode ser batida. Hoje você compra um celular, e amanhã lhe dizem que ele dá câncer, então você o joga pela janela. Você se transforma num robô comandado exatamente como antes, no louvor extremista das religiões. É como na sua adolescência, quando você defende ardorosamente suas ideias e se recusa a aceitar qualquer outro ponto de vista. Posteriormente, percebe que isso é estúpido. Suas noções singulares se mantêm, mas você chega aos vinte, trinta anos e vê o quão importante podem ser outras perspectivas, até para seu próprio crescimento. Mas é o mundo em que vivemos, e nossos comportamentos também não escapam muito disso. Temos aí a maior país do mundo, os Estados Unidos, se comportando como uma nação de adolescentes. Da mesma forma, a ciência às vezes parece ser uma religião adolescente. É um período muito instável na história da humanidade.

Um dos pontos de grande destaque em Be é Vocari Dei, com todas aquelas pessoas enviando mensagens a Deus, mas sem receber qualquer resposta, e cada uma se apresenta de uma maneira. Como foi a gravação da música e das mensagens?
Eu gostaria de retratar em Vocari Dei a relação dos seres humanos com qualquer tipo de entidade maior. Neste caso específico, Deus. Tive a ideia de colocar numa secretária eletrônica um determinado número de telefone, depois pedi às pessoas que se dispusessem a ligar para falar do fundo de seus corações aquilo que realmente sentiam. Como resultado, você pode ouvir mensagens que variam do mais profundo desespero a outras até engraçadas. Eu não conhecia nenhuma das pessoas que participaram, e não olhamos os nomes ou telefones para selecionar quais gravações colocaríamos. Somente pegaríamos aquelas que nos tocassem mais, que tivessem um lado emotivo forte, seja jocoso ou doloroso. Hoje conheço duas das pessoas que ligaram. Uma delas é do nosso fã-clube grego.

É uma das constatações mais poderosas que já vi e ouvi das relações dos seres humanos com Deus.
Fico feliz que você pense assim. Queríamos retratar isso. A religião não precisa ser essencialmente algo ruim. Às vezes temos de acreditar intensamente mesmo no que não vemos, e isso nunca pode ser considerado errado. Pelo contrário, é preciso acreditar muito em alguma coisa, e para muitas pessoas essa crença está ligada a Deus. Não vejo problema algum nisso. Só precisamos respeitar.

Nas primeiras audições de Be, devo admitir que me choquei um pouco. Tive a impressão de que você se afastava um pouco do conceito, não deixava que ele sangrasse. Diferentemente do que aconteceu em Remedy Lane (2002), uma autobiografia em que a sua vida e seus sentimentos se faziam presentes mais intensamente.
Entendo o que você quer dizer, e Be e Remedy Lane são de fato álbuns bem diferentes nesse sentido. Porém, talvez eu esteja muito mais envolvido neste conceito do que você imagina, pois passei muito tempo trabalhando e pensando nele. Nunca adentrei tão profundamente em qualquer outro assunto. Certamente, não é tão particular e íntimo quanto Remedy Lane, mas a verdade é que não é possível fazer isso todo o tempo, e eu queria experimentar outras possibilidades. Você está envolvido em qualquer coisa que faça, e talvez não haja razão para desenvolver conceitos íntimos o tempo inteiro. De qualquer forma, musical e pessoalmente, Be é um conjunto de tudo o que aprendemos nestes anos de banda.

Outro ponto polêmico em Be, especialmente para os brasileiros, foi a inclusão na bibliografia de um livro de Paulo Coelho. Não sei como a obra dele é vista no exterior, mas aqui no Brasil há muitas controvérsias em relação aos escritos dele.
Fiquei sabendo disso por mensagens de fãs brasileiros. Na verdade, a primeira coisa que chamou a minha atenção no livro “Veronika decide morrer” foi o próprio título, e também já conhecia Paulo Coelho de nome. Gosto do livro, acredito que lida com a religião numa via bastante dolorosa. Porém, não sei muito o que dizer sobre o autor, pois li também outra obra dele, “Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei”, e este é realmente péssimo. Acho que posso compreender as controvérsias sobre os trabalhos dele (risos), mas o que gosto em “Veronika decide morrer” é a maneira como ele aborda a vontade ou a falta de vontade para continuar a vida. Aquilo me tocou bastante. Pensei muito em como podemos nos constituir como seres autodestrutivos. É interessante como aqui na Europa gastamos uma quantia absurda de dinheiro com o trânsito, e as estatísticas nos dizem que os acidentes vêm diminuindo a cada ano, assim como engarrafamentos. No entanto, não pensamos na quantidade imensa de suicídios, que só vem crescendo. A saúde mental dos seres humanos é algo preocupante.

O que você pensa da eutanásia, que atualmente vem sendo tão discutida?
É um assunto muito difícil de tratar. É claro que cada um faz o que quer de sua própria vida. Por outro lado, quando você decide que não quer viver mais, deve considerar outras circunstâncias, pois provavelmente não está vendo as coisas de maneira muito clara. As situações variam bastante e são diferentes caso a caso. Não podemos comparar a decisão pela eutanásia de um jovem de vinte anos à de uma pessoa de oitenta e cinco anos diagnosticada com um câncer, com o qual vai sofrer por três anos ou mais. Quando você comete suicídio deixa muitas pessoas para trás. No fim das contas, a decisão não é apenas por sua vida, pois envolve tantas outras pessoas. Tive muitos amigos realmente próximos que se mataram, e mal sabem eles como afetaram nossas vidas com isso. Não existe certo ou errado nessa situação, mas creio que é preciso pensar muito nisso antes de tomar qualquer decisão que pode tirar a única coisa que temos.

Algumas letras de Remedy Lane assustam até pela forma como você trata de sua própria vida, como fala das situações que viveu et cetera. Como foi o efeito deste álbum nas suas relações com as pessoas envolvidas no conceito, especialmente sua mulher?
Naquela época eu queria muito repassar profundamente várias fases e momentos marcantes da minha vida. Tive diversas crises pessoais, passei por períodos difíceis. Porém, não poderia expor tanto as pessoas envolvidas na minha história. Havia uma grande responsabilidade sobre meus ombros. Foi difícil achar um ponto para falar de coisas tão íntimas sem magoar ou ferir aqueles que estão próximos de mim, especialmente minha mulher, que está sempre presente em Remedy Lane. Tive que trabalhar bastante nisso. As histórias são reais, os personagens também, mas de alguma forma estes ganharam uma coloração diferente, um escudo. Trouxe experiências e características da vida de outras pessoas, parentes e amigos próximos e distantes. Montei alguns personagens pensando nos outros ao meu redor, consegui desenvolver um conceito que fala de períodos da minha vida em que me sentia muito perdido até uma fase em que pensei ter me encontrado. Por ser tão íntimo e próximo da realidade, o processo de composição de Remedy Lane foi bastante complicado.


E qual foi o efeito para você, depois de o disco ter sido feito e lançado?
Tudo é capaz de transformar sua vida. Quando trabalhamos com discos conceituais, estamos sempre em busca de respostas, explicações para o que não compreendemos. Naquele álbum em especial, a busca e a restauração de mim mesmo. Então, Remedy Lane teve um efeito na minha maneira de pensar em quem sou e como sou, e também no modo como vejo e analiso o mundo. Mas não ao ponto de ter mudado a direção das coisas ou minha personalidade.

Uma das melhores músicas que ouvi nos últimos anos foi a versão acústica para Ashes, presente em 12:5 (2004). Às vezes você soa como um cantor de blues, em outras, mais romântico. Como foi possível chegar a essa interpretação para uma composição tão carregada e obscura?
Na preparação para 12:5, antes mesmo de ensaiarmos juntos, estávamos pensando em arranjos diferentes para as músicas, em elementos que poderíamos acrescentar, uso de afinações diferentes, instrumentos que combinariam melhor com o acústico, entre outras coisas. Algumas versões estavam muito estranhas, e tivemos que repensar várias delas até chegarmos àquelas que queríamos e que você ouve no disco. Quando nos reunimos para ensaiar, ficamos surpresos com tudo o que tínhamos. As releituras estavam muito ricas, e pensamos naquelas variações em Ashes exatamente por ser uma música muito sombria. Além disso, as letras não possibilitam que ela deixe de ter um conteúdo depressivo, violento, sexual. A combinação soa inusitada, e a versão que gravamos para 12:5 chega a ser fantasmagórica por causa da leveza. É como estar frente a frente com um serial killer sorrindo para você.

Ficou ainda mais dura de se ouvir, pois chega a conter um certo cinismo, não?
Sim, exatamente, e adorei aquilo. No entanto, depois que gravamos 12:5 recebi alguns e-mails de pessoas dizendo que realmente amaram o álbum, mas que eu nunca mais deveria cantar Ashes daquela forma (risos). Se você pensar que estamos zombando da música, pode ficar irritado, e com razão. Porém, não foi isso que fizemos. Particularmente, também gosto demais desse novo arranjo. Depende da maneira como cada um lê e ouve a música.

Você é agora um membro fixo do Flower Kings, certo? Como isso aconteceu?
Tudo começou com o baixista da banda, Jonas Reingold, com quem mantenho contato há alguns anos. Ele ficou sabendo que o Transatlantic precisava de um músico que tocasse vários instrumentos e também pudesse cantar durante a turnê, então pensou em mim. Na verdade, ele não fez apenas isso. Também me indicou para os membros do Transatlantic, que conta com Roine Stolt, líder do Flower Kings. Parece que ele gostou do que fiz na turnê europeia, assim me chamou para participar também da turnê de sua banda, de um álbum de estúdio, posteriormente de uma nova turnê e, depois, de outro álbum. E assim foi, uma coisa levando a outra. É ótimo estar nessa banda. Fico no centro de tudo no Pain of Salvation, então é excelente ver as coisas por um outro lado, não ser o principal compositor, como acontece no Flower Kings. E é um grupo de músicos verdadeiramente monstruosos.

E sobre o Transatlantic? O que você nos diria da experiência de excursionar e gravar um ao vivo com o megaprojeto?
O Transatlantic também foi algo muito especial. Fiquei um pouco ansioso antes da turnê, pois não tive tempo de ensaiar direito, já que o Pain of Salvation estava gravando um álbum naquela época. E não conhecia os músicos, apenas os tinha visto uma ou duas vezes antes. De toda forma, deu tudo certo ao vivo. Eu olhava para o palco e me via acompanhado por dois caras que fizeram parte da minha vida por um longo período. Primeiramente, Pete Trewavas, já que por muito tempo ouvi incessantemente o Clutching at Straws, do Marillion. Depois, Mike Portnoy, que havia me impressionado com Images and Words, álbum que ficou uns dois anos direto no meu CD Player. São músicos que marcaram um certo período da minha vida, e de repente me vi ao lado de ambos. Foi sensacional.

Um momento turbulento em sua carreira foi no O.S.I, um projeto também envolvendo Mike Portnoy. A amizade de vocês saiu afetada? Como foi tudo aquilo para você?
Nada mudou na minha relação com Mike Portnoy, e ele não teve qualquer culpa no que aconteceu. Na verdade, a ideia de que eu cantasse no O.S.I. partiu dele, assim como no Hammer of the Gods (N.E.: tributo ao Led Zeppelin criado por Portnoy e que contava também com Paul Gilbert, do Mr. Big, e Dave LaRue, do Dixie Dregs). Eis o que de fato ocorreu: no projeto original eu cantaria junto com Kevin Moore. Nós dois dividiríamos os vocais, então enviei uma mensagem para o Jim Matheos, guitarrista do Fates Warning e idealizador do O.S.I., dizendo que nunca havia trabalhado com Kevin, mas pelo que conhecia do dele sabia que certamente teríamos um contraste interessante nas vocalizações. Trocamos alguns emails e só. Não posso dizer que ele é uma pessoa ruim ou qualquer coisa assim, somente preferiu que eu não participasse do disco. Em certo momento, acredito eu, ele deve ter pensado: “Bem, eu conheço Kevin Moore, que também estará envolvido na produção. Por outro lado, nunca trabalhei com este tal de Daniel e não sei no que vai dar”. Se eu fosse ele, o que definitivamente não sou, talvez fizesse a mesma escolha. O que realmente me irritou é que fui avisado de que não estaria mais no projeto dois dias antes da minha viagem a Nova York, onde gravaríamos tudo. Passei um longo tempo me preparando e trabalhando no material, mas no último instante recebi a notícia de que estava fora. Aquilo realmente me deixou puto. Não costumo ser tratado assim ou tratar qualquer pessoa dessa maneira.

Daniel, gostaria de agradecer pela entrevista e deixar o espaço final para você. o Brasil vem esperando pelo Pain of Salvation há muito tempo, e já está na hora de vocês tocarem aqui…
Nós recebemos muitas mensagens de toda a América do Sul, especialmente do Brasil, mas é terrível não termos a oportunidade de conhecê-los e de tocar para vocês. Podemos ter milhares de fãs aí, mas apenas uma dúzia que adora mandar e-mails (risos). Falando sério agora, acertar uma turnê é sempre difícil, mas queremos muito tocar no Brasil. Particularmente, mesmo se não tivesse o Pain of Salvation, eu gostaria de visitar o seu país, de conhecer mais a sua cultura. No entanto, o fato é que tenho uma banda e agora queremos ir ao Brasil e tocar nossa música ao vivo para os fãs que mais nos dão apoio em todo o mundo. Espero que isso possa acontecer ainda este ano. Se não for possível, tenha certeza de que continuaremos insistindo. Muito obrigado por tudo. Sou grato a todos os nossos fãs brasileiros.

A entrevista foi realizada em março de 2005 e publicada no número 4 da Disconnected, em abril do mesmo ano. E foi um trabalho a quatro mãos: pauta feita em conjunto por mim e Thiago Sarkis, que conduziu o papo com Daniel Gildenlöw e depois fez a transcrição. Em vez de eu usar aqui exatamente o que entrou nas páginas da revista – foram quatro, uma vez que a banda dividiu a capa com o Shaaman (à época com o “a” dobrado) –, peguei o arquivo original para uma nova revisão e edição. Usei apenas o abre original, mas a conversa está na íntegra. Um aquecimento para os shows que o Pain of Salvation fará em abril no Brasil: Rio de Janeiro (26), Belo Horizonte (27), Limeira (28) e São Paulo (29).