Por Daniel Dutra | Fotos: Divulgação
Não há dúvida que uma das coisas mais chatas para os membros de uma banda é falar das mudanças ocasionadas pelo entra e sai de músicos, principalmente ter de conviver com o que chamam de fase clássica. E passados quase seis anos da saída de Max Cavalera, o Sepultura conseguiu manter-se como o maior nome brasileiro do heavy metal em todos os tempos. Com Derrick Green nos vocais, gravou dois discos – o bom Against (1998) e o ótimo Nation (2001) –, está preparando o terceiro e encontra-se próximo do lançamento do EP de covers chamado Revolusongs, previsto para o fim do ano.
Apesar do status atual, não há como negar que a banda viveu um período de ouro no meio dos anos 90, quando chegou a ser considerada a maior banda de metal do planeta. E dessa época surge o CD duplo ao vivo Under a Pale Grey Sky, gravado durante a turnê da obra-prima Roots (1996), tendo como acompanhamento Chaos DVD, um achado que contém os três home videos lançados na década passada. Chegando ao mercado brasileiro via Sum Records, ex-gravadora da banda aqui, os dois itens são obrigatórios e mostram o porquê de o Sepultura ser o maior produto de exportação da história do rock brasileiro.
Um CD que nasceu discoteca básica
Gravado na Brixton Academy, em Londres, no dia 16 de dezembro de 1996, Under a Pale Grey Sky é o registro do último show com Max. Independentemente de não dar aval ao disco – nas prateleiras à revelia do grupo, que não teria sido consultado ao menos para opinar sobre a arte da capa –, porque o guitarrista Andreas Kisser lembrou recentemente que o clima interno já não era bom. Tudo bem, mas há o outro lado da moeda. Os entraves com Gloria Cavalera, mulher de Max e então empresária da banda, deram no que todos sabemos, mas ao vivo o papo era outro. O CD mostra como (até hoje) é um show do Sepultura: energia para dar e vender. Mas o que fazer se justamente naquele ano a fase era não menos que brilhante? E o disco é isso mesmo: brilhante.
Esqueça todo o falatório e ouça o que Kisser, Max, Igor Cavalera e Paulo Jr. deixaram registrado. Impossível ficar indiferente a um repertório simplesmente devastador. Em mais de duas horas de música você encontra (quase) todos os clássicos num show inesquecível (sabem do que estou falando aqueles que assistiram a uma apresentação ao menos da turnê). As boas-vindas ao público inglês é sintomático: “Greetings from the Third World”, berra Max. A saudação do Terceiro Mundo vem na forma espetacular de Roots Bloody Roots, Spit, Territory, Breed Apart, Attitude, Cut-Throat (com um trecho de Cornucopia, do Black Sabbath), o medley Beneath the Remains/Mass Hypnosis, Troops of Doom e Desperate Cry. E no primeiro disquinho há mais, incluindo Monólogo ao Pé do Ouvido, de Chico Science.
Nos intervalos dos momentos em que você se pega cantando e com vontade de sair pogando, percebe que Igor estava numa noite inspirada, tocando uma barbaridade. Clima ruim? O segundo CD esconde o fato para os fãs. Parecia mesmo estar tudo muito bem. We Who Are Not as Others, Straighthate, Dictatorshit, Refuse/Resist, Arise/Dead Embryonic Cells, Slave New World, Biotech is Godzilla e Inner Self aparecem em versões absolutamente matadoras. A veia regional, presente em diversos momentos do show, chega ao momento máximo em Kaiowas e Ratamahatta (para quem não sabe, composta e gravada com Carlinhos Brown). Fácil imaginar a reação de um público pouco acostumado a uma riqueza musical como a brasileira.
Como se ainda precisasse de mais alguma coisa, a banda ataca de Polícia (Titãs, com menção ao Bad Brains em Gene Machine/Don’t Bother Me), We Gotta Know (Cro-Mags) e a apoteose de sempre com Orgasmatron (Motörhead). A única coisa a lamentar é que o set list não tem nada do álbum Schizophrenia (1987), que catapultou o grupo para seu primeiro contrato com uma gravadora estrangeira (Roadrunner). Mas são vários os motivos para Under a Pale Grey Sky entrar com méritos na discografia oficial do Sepultura. É para ser escutado sempre, com o volume mais alto possível. Fazer história é motivo de orgulho para qualquer um.
Chaos DVD, o vídeo 3×1
Mais do que um aperitivo, Chaos DVD é um trabalho que mostra a evolução do grupo do período em que deixava de virar promessa fora do Brasil até a separação da formação clássica. Under Siege (1992), Thirld World Chaos (1995) e We Are What We Are (1997) abrangem os períodos de Arise (1991), Chaos A.D. (1993) e Roots (1996), respectivamente, e num mesmo pacote são um atrativo ainda maior para aqueles que pouco conhecem a trajetória da banda.
Under Siege é pura e simplesmente uma hora do show realizado no Zeleste, em 31 de maio de 91. A casa de shows em Barcelona, Espanha, abrigava a primeira grande turnê do grupo como headliner. No outro extremo, We Are What We Are traz em 20 minutos depoimentos dos integrantes sobre o sucesso de Roots, além dos clipes de Roots Bloody Roots, Ratamahatta e Attitude.
Mas o filé é mesmo Third World Chaos, que conta com imagens antológicas. Não faltam clipes (Slave New World, Refuse/Resist, Territory, Arise e Dead Embryonic Cells), e as cenas de bastidores são ótimas, mas as performances ao vivo já valem todo o DVD. Três momentos são marcantes, a começar por 1992, com a jam de Andreas e Igor com Jello Biafra em São Paulo, onde tocaram Holiday in Cambodia, do Dead Kennedys. Dois anos depois, no Castle Donnington, na Inglaterra, uma onda humana agitando sem parar em Kaiowas e Polícia. Para terminar, João Gordo e Jão subindo ao palco do Hollywood Rock para uma versão de Crucificados pelo Sistema, clássico do Ratos do Porão. Ah, sim! De bônus o DVD só tem a discografia, mas…
O futuro
Depois de um bom tempo morando em Phoenix (Arizona), Andreas, Igor, Paulo voltaram ao Brasil e, com Derrick de mala e cuia, fizeram algo impensável há alguns anos: levaram a turnê do Nation não apenas às grandes capitais do país. Algumas coisas, no entanto, continuam as mesmas: os quatro nem precisam dos primeiros acordes para ter o público nas mãos (lembram do Rock in Rio 3?). Afinal, o show continua o mesmo. Chaos DVD e Under a Pale Grey Sky são capítulos maravilhosos da mais bem-sucedida banda brasileira no exterior. À parte, porque a história ainda está longe de terminar.
Revolusongs será lançado em dezembro no Brasil (FNM/Universal), Japão (JVC) e Europa (SPV), ainda sem previsão para os Estados Unidos, e contará com versões de músicas do Exodus (Piranha), Jane’s Addiction (Mountain Song), Devo (Mongoloid), U2 (Bullet the Blue Sky), Hellhammer (Messiah) e Public Enemy (Black Steel in the Hour of Chaos), além da possível inclusão de duas músicas inéditas (uma delas, Corrupted, presente nos últimos shows). Indo além, dez canções do próximo trabalho já estão em fase de finalização. Que seja a hora de reconquistar terreno perdido. Não por ser um produto nacional, mas porque o rock precisa de mais grupos como o Sepultura.
Resenha publicada na edição 89 do International Magazine, em novembro de 2002.