Por Daniel Dutra | Fotos: Mario Alberto
Depois de bater um belo papo com o vocalista Corey Glover (confira como foi) e esmiuçar o novo disco do Living Colour, CollideØscope (saiba mais aqui), o International Magazine esteve em duas das cinco apresentações que o grupo fez em abril no Brasil: na segunda noite em São Paulo (17), no Via Funchal, e no show único realizado no Rio de Janeiro (22). Se pudesse, o escriba aqui teria assistido aos outros três shows ― a banda ainda tocou em Curitiba (23) e Porto Alegre (24) ―, e sem a menor possibilidade de arrependimento.
Motivos para tanto não faltam, mas o principal é que cada noite é uma surpresa. Fugindo da previsibilidade, o grupo não apenas altera a ordem do repertório, como apresenta um set list diferente em cada show. Quem foi ao primeiro show em São Paulo se deliciou com Memories Can’t Wait, Go Away, Nothingness, Broken Hearts e Should I Stay or Should I Go (The Clash). Na noite seguinte, mais duas canções novas ― Song Without Sin e a bela Pocket of Tears, arrasadora com um trecho de Sex Machine, de James Brown ― se juntaram a covers de Rolling Stones (a improvisada Time is on My Side), Jimi Hendrix (Crosstown Traffic) e Bad Brains (Sailin’ on). Um show maravilhoso, principalmente para quem esperou quase 11 anos para assistir novamente ao quarteto, mas que perdeu em animação para o do Rio.
Em um Canecão quase lotado, Glover, Vernon Reid (guitarra), Doug Wimbish (baixo) e Will Calhoun (bateria) deram uma aula de música, energia e empatia com o público. Começar com Back in Black, do AC/DC, e emendar com Type foram motivos suficientes para colocar a casa abaixo. Middle Man, Leave it Alone, Memories Can’t Wait e Time’s Up deram sequência à covardia, levando os fãs à loucura e mostrando uma banda afiadíssima – o que não foi nenhuma surpresa – e absolutamente de bem com a vida.
A reclamação de muita gente em relação à dificuldade em achar CollideØscope, apesar de o CD ter sido lançado no Brasil há quase seis meses, não é à toa. In Your Name, a excelente A ? of When, Sacred Ground e Flying foram tocadas de uma só vez, e a grande maioria apenas prestou atenção. Havia quem soubesse as letras do início ao fim ― principalmente de Sacred Ground, uma das quatro inéditas da coletânea Pride (1995), que foi regravada no novo disco ―, mas era a hora de apenas aplaudir. A maravilhosa Flying, por sinal, foi um dos pontos altos, ainda mais com o brilhante improviso de Reid no fim.
Falando em brilhar, a interpretação de Glover no início de Open Letter (To a Landlord) é simplesmente de arrancar lágrimas. Em uma das melhores canções da banda, o vocalista deu uma aula de feeling e improviso, incluindo até mesmo canto gospel, e mostrou que definitivamente está entre os melhores do mundo. Só vendo e ouvindo para crer. Acompanhado apenas de Calhoun, Wimbish teve sua vez em Terrorism, uma crítica aos “bastardos que vêm tornando o mundo um lugar ruim para viver”, e o baixista não deixou de citar o presidente dos EUA, George W. Bush, e o primeiro-ministro da Inglaterra, Tony Blair, além da CIA, do FBI e da rede CNN. Desnecessário dizer que sobraram aplausos.
Reid ainda cantou 7 Nation Army, do chatíssimo White Stripes, e daí para frente o Canecão terminou de se transformar numa verdadeira apoteose. Postman, a primeira surpresa no repertório, abriu caminho para o clássico Cult of Personality, cantada em uníssono pelos fãs. Glamour Boys contou com nove garotas tiradas da platéia para dançar no palco ― a maioria escolhida por Glover ―, e Elvis is Dead só não terminou de incendiar a casa porque ainda havia mais pela frente. Depois de Calhoun mostrar por que é venerado por dez entre dez bateristas, Ignorance is Bliss e um blues improvisado foram o cartão de visitas para outro clássico, a espetacular Love Rears its Ugly Head.
A grande surpresa da noite veio mesmo a seguir, com Funny Vibe, que não foi apresentada em São Paulo e era uma das mais aguardadas pelos fãs. O show terminaria com Crosstown Traffic e sua oportuna menção a What’s Your Favorite Colour?, mas a banda resolveu voltar. Mesmo depois da segunda despedida, com Glover e Wimbish descendo ao “chiqueirinho” para cumprimentar os fãs e tirar fotos com quem pedisse, ainda teve espaço para Should I Stay or Should I Go. Se ainda há alguma dúvida, o motivo foi mesmo a satisfação da banda com a reação do público. Não houve quem ficasse parado na pista, assim como Glover e Wimbish foram um show à parte nas duas horas e 35 minutos de um show inesquecível.
Resenha publicada na edição 102 do International Magazine, em maio de 2004.